A partida de 106 anos

Belo Horizonte , como foi uma cidade planejada, teve uma inauguração oficial: 1897. Logo, em 1912, ano da fundação do América F. Clube, a cidade era uma mera “debutante” de 15 anos.

A cidade nascia quase junto com uma partida eterna, que jamais terminará. Essa partida é o clássico América x Atlético, que já foi América x Athlético, clássico das multidões, galo x coelho, etc. Ao longo das Eras, atravessando ditaduras, cortinas de ferro, Guerras frias, tsunamis, terremotos no mundo, Copas, o clássico resiste a tudo.

Convencionalmente uma partida possui dois tempos. Essa já possui 2.404 tempos, já passou da esfera dos milhares. Começamos bem com a vitória de 1 x 0, gol do Júlio Cunha em 14 de Junho de 1914. Também em 1914 se deu a primeira goleada do COELHÃO, 4 x 0. O campeonato mineiro oficialmente começou como “campeonato da cidade” e só teve início em 1915. Sim, senhoras e senhores. O clássico é mais velho que até o Campeonato Mineiro. O clássico existe antes da estratosfera, das placas tectônicas, ouso a dizer que Caim e Abel estiveram cada um de um lado, vestindo os panteões dos dois clubes em algum embate do Prado Mineiro.

Foto de Marinho Monteiro ao lado de Jair BalaAo longo das décadas, o COELHO foi visto de formas diferentes. Era a máquina demolidora do Deca, depois o contestador do profissionalismo, a fênix da ressurreição da Nova Alameda, o resistente da tríplice coroa, o tradicional da era Mineirão, regido pelo maestro Jair Bala, o quase extinto dos anos 80,  a retomada das grandes vitórias em clássicos dos anos 90 e a reconstrução dos ano 2000.

Independente dessa forma como o América estava, era clássico o Coelho dar a vida no jogo mais importante do ano. E daí surgem exemplos épicos: como o Coelho, que mal tinha campo para treinar, ganhar de uma seleção atleticana com gol do Luís Carlos Gaúcho. Tradição não se explica. Essa partida tem vida própria.

Por ela ter autonomia na sua existência, ela não depende de campeonatos. Ela nasceu antes. Muitos do futebol moderno olham o clássico depois de olhar em que campeonato ele está inserido, ou até mesmo em qual fase, para atribuir relevância. O clássico vem antes disso tudo. Pode ser um inimistoso (amistoso não ouso dizer) ou uma possível semifinal de Libertadores (um dia chegaremos). Não importa. É América x Atlético, antes de tudo. Tem que vencer! Quando digo que é muito mais que 3 pontos, não significa o aspecto de pontuar somente na tabela. É o coração do perpétuo que está em jogo. É mais um tempo daquilo que nunca terá fim. É a auto estima para a nossa sobrevivência institucionalmente. Estranho, “eles”, que se julgam sempre superiores e nos tratam como “mequinha”, simplesmente cobiçam tudo que temos, desde o início da história. Estranho cobiçar aquilo que se julga inferior, não é? São incoerentes até nisso.

Isso não é de hoje:

– Fizeram de tudo para tomar o Independência.

– Fizeram de tudo para colocar arquibancadas metálicas do jeito deles.

– América, histórico revelador de talentos, sempre teve seus craques mega desejados pelos carijós. E pior, era “obrigatório”, na visão deles, passar para eles a preço de banana.

– Várias vezes em priscas eras queriam fundir as estruturas. Fundir no caso para o América deixar de existir e eles manterem todos os seus simbolismos na instituição.

– Usam o 9×2 como a maior partida deles contra o Cruzeiro. Sendo que o 9×2 foi uma partida do contexto dos DEZ anos de títulos seguidos do América. E justo o DECA do Coelho é ACHINCALHADO por eles. Estranho. Enaltecem uma partida e desdenham 10 canecos do mesmo contexto… Isso explica como um jogo pode ser maior que tudo. Sem contar que o Cruzeiro assumiu ter perdido de propósito para o América não abocanhar o 11º título seguido, confissão do zagueiro Ninão e já publicado no Estado Minas e no livro Futebol do embalo da nostalgia, do Plínio Barreto, citação na página 108. Sim, juntaram todas as forças para acabarem com o América. Até duas ligas foram feitas em 1926 para minar a máquina do DECA.

– Alegam ser o clube do povão sendo que tem os ingressos mais caros e o sócio-torcedor mais elitista do futebol mineiro. Chamam o nosso COELHO, o time das entradas mais modestas e populares, como excludente. América, justo o único clube fundado por negro em Belo Horizonte, Geraldino de Carvalho. Aquele formado por crianças que aceitavam tudo e todos em seu quadro, com o nome escolhido por uma menina num sorteio, Alda Meira, que aceitou até os dissidentes do Atlético na famosa briga de 1913, aonde gente lá de dentro saiu e prometeu acabar com eles, o que foi realmente feito, já que o deca campeonato de 1916-1925 foi construído com auxílio daqueles ex-alvinegros que juraram vingança. O nosso reduto até os dias de hoje é o ambiente mais familiar do futebol mineiro. É muito comum se cumprimentar aquele que jamais conversou com a gente, ou enturmar logo de cara. Por isso é comum muitos americanos irem sozinhos ao campo e mergulhar nesse universo de novas e antigas amizades.

Posso ficar o ano inteiro citando fatos. Um ano não é nada pra aquilo que é eterno. Assim, até na antiga “purrinha” na frente do Café Nice, se tiver um atleticano do outro lado, é vencer ou ganhar.

Aliás, é costumeiro conhecermos o clássico antes mesmo de ir ao jogo propriamente dito. Meu saudoso avô, me levando para o parque dos Mangabeiras, ao levar uma fechada acintosa na av. Afonso Pena, com todo pudor, avisa: “sai pra lá atleticano”. Para uma criança de cinco ou seis anos, entendia que era o pior dos xingamentos. E com o tempo, tive trabalho para “desfazer” essa lavagem cerebral.  Se bem que quando ouço o soar do apito de mais um tempo dessa batalha, aquela criança aparece ao meu lado caladinha e segura a minha mão. Há mais de 30 anos.

O Mineirão ou o Independência com um barulho ensurdecedor da vibrante massa rival, é o cenário que faz um modesto time americano encarar ataques milionários. São os dedos cruzados de cada americano. É o típico jogo em que até os que se foram descem à Terra para conferir.

Esqueço o campeonato, ou a fase. Em qualquer situação, balançar a rede alvinegra me faz a pessoa mais feliz do mundo.

Todos ao Independência para apoiar os comandados do Enderson Moreira. Eles passam, as camisas dos dois times continuam se digladiando. A camisa deles, eles torcem contra o vento. A nossa é mais pesada porque tem sangue jorrado pela luta da sobrevivência. E sangue não evapora como água do suor. Fica no tecido, marcado. Não sai nem com lavagem. Não torcemos contra o vento. Rimos dos furacões.

América, eu te amo.

Mário César Monteiro
twitter.com/MarioMonteirone


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3 comentários sobre “A partida de 106 anos

  1. Sempre me incomodei ao longo de todos os anos de infância, adolescência e vida adulta (?, rsrs) com as provocações e a postura arrogante de atleticanos. Frequentemente o único americano das turmas de colégio, faculdade e ambientes profissionais, convivi com o “bullying” atleticano, buscando sempre responder à altura. Às vezes pensei em deixar isso para lá, porém, lendo os brilhantes textos do Marinho, como este, deixo o contexto histórico envolvido retomar o controle e reforçar ainda mais o desejo por uma vitória esmagadora sobre este adversário. E poder brincar com eles depois, pois isso nos difere deles: não transformamos a rivalidade em violência.

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